quarta-feira, 9 de julho de 2008

Epifania Corrosiva
Sentada na praça sozinha, chorou. Já não lembrava mais do último episódio de carinho e atenção recebidos. Entrara num tempo sem sorrisos, sem palavras, sem ação, sem vida. Embora soubesse que, cedo ou tarde, colocaria fim a seu solitário respirar.
Era costume saborear, apenas com ela mesma, as damas da noite e admirar as amoras roxinhas tingindo o chão no início da primavera. Sem garotos, sem doces romances, deixava a adolescência sem nunca ter provado o gosto da rebeldia, do questionamento, de risadas e lágrimas compartilhadas. Talvez por sua personalidade, sempre introspectiva, ou pela aparência, fora dos patrões.
Exímia escritora, recheou cadernos e blocos ao longo de seus dias. Sensações e acontecimentos na contra-mão: uma coletividade de desamores e desesperos. Palavras escolhidas com esmero e sensatez para descrever tão rudes e trágicos enredos. O livro perfeito das atrocidades atiradas contra uma alma sensível e bela. Escuridão amarga e calor intoxicante. As páginas verdes, machucadas com tinta vermelha, apresentavam sutis borrões de água salgada produzida por seu corpo.
“O que é felicidade?” perguntava-se. Procurava-a nas borboletas de sua alma, atraídas por raiozinhos de sol sobreviventes em meio a tanta nebulosidade e poluição visceral. Talvez fosse o calor de sua mãe, que há muito se fora. Ou dividir idéias com quem a cerca? Porém, a dificuldade fez de sua utopia eterna impossibilidade. Frustrantes resquícios quentinhos e coloridos de um inverno de dez anos atrás levados pela amena e desesperadora brisa de fim de tarde. Não encontrava mais com o que regar seus sonhos, nem mesmo forças para plantar sementes de metas alcançáveis. Seus olhos desaprenderam de brilhar, seus lábios, de esboçar um sorriso. Era só tristeza-memória.
É, havia a memória: intacta, intocável, eternizada. Mas eram apenas fantasmas.
Agora, percebe. Nem mesmo o som do Renato Russo nem as palavras de Clarice Lispector lhe traziam alegria, amor, euforia. A fúnebre esperança lhe soa como um digno escape. Mas quem abriria mão de ocupantes rotinas para, apenas, pôr fim a seu sofrimento? Então sua infindável solidão toma um novo rumo: conforma-se. Após tantas cinzentas desilusões, seria capaz de assumir o papel de seu algoz?

Marina Garcia
Novembro/2007
E eu ainda mudo o título.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Minhas memórias

"Qualquer coisa que se sinta
tem tantos sentimentos,
deve ter algum que sirva"
Socorro, Arnaldo Antunes
Coleções

Sou uma amante assídua de memórias. Aprecio o fato de elas me fazerem suas vitimas e me levarem a distantes e risonhos mundos passados. Não troco lembranças nem por sucos de morango ou sorvete de menta, por mais pavoroso que isso soe.
Recordações são saquinhos fofinhos de veludo vermelho carregados sempre do lado esquerdo. Saquinhos sem fundo, amarrados levemente de modo a novas recordações sempre terem entrada facilitada, mas os amarrilhos são fortes o suficiente para aprisionarem, com conforto, as relíquias da mente.
E não aprecio apenas o fato de carregá-las infindavelmente. Tão fascinante quanto é o sutil prazer em ouvi-las. Sempre estou atenta a pequenas aberturas das douradas amarras alheias, quando seu carregador se vê disposto a dividi-las comigo. Ah, que momento único! Abre-se delicadamente e revivem-se narrativas ingênuas, recheadas de generosas porções de emoção: as tão desejadas maçãs esmagadas cruelmente pelo ônibus apressado; a melhor amiga que passa a ser paixão em seis meses; as tardes preenchidas com pequenos grandes livros; o medo da chuva; o sedutor cheiro de café na casa da vó; orelhas geladas e sorrisos abertos diante do frio paulista; os passeios de trem e metrô no centro velho de São Paulo; a música tocada no rádio no minuto certo. As palavras vão-se escapando, e quase sempre posso ver um sorriso de criança por trás delas. Às vezes, são lágrimas alagando os olhos do narrador, teimando em continuarem nos sinuosos caminhos ópticos. Memórias podem trazer também sentimentos complexos e, por vezes, causam dor. E ao apalpá-las com palavras, noto que compartilhá-las é cura.
A verdade é que gosto e ponto final. Sou uma fiel colecionadora de memórias. As minhas sim. E as de quem quiser contribuir.
Marina Garcia, janeiro/2008

Carlos Drummond de Andrade

O mundo é grande

O mundo é grande e cabe
nesta janela sobre o mar.
O mar é grande e cabe
na cama e no colchão de amar.
O amor é grande e cabe
no breve espaço de beijar.